segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Imaginação: A Espera

A casa, sempre silenciosa e quieta, ficava num rés-do-chão alto de um prédio antigo.  O prédio, dos primeiros a ser construído naquela rua, tinha mais três andares para além daquele.  Ao todo, oito famílias co-habitavam debaixo do mesmo tecto.  Quase todos viviam ali à bastante tempo, mais de trinta anos, sendo que os últimos a entrar naquela família haviam chegado à 9 anos, quase uma década.  Todos se tratavam pelo primeiro nome, e, de há uns tempos para cá, todos se preocupavam com a D. Ana Bela.
Ao entrar no prédio, irremediavelmente, lançavam um olhar para as janelas do rés-do-chão.  Mesmo que tentassem olhar para dentro de casa, o que era difícil pois os parapeitos ficavam acima da cabeça da maior parte dos habitantes do edifício, não conseguiriam ver nada pois os estores de plástico encontravam-se sempre fechados.  Pelas pequenas nesgas dos intervalos julgavam, por vezes, poder vislumbrar o olhar da idosa senhora, mas nenhum ruído ou movimento indicavam que alguém se encontrasse em casa.
As coisas nem sempre foram assim…  a casa da D. Ana Bela e do Sr. Jacinto era, por norma, o ponto de encontro de todos.  As reuniões da administração davam-se no apartamento decorado de forma aconchegante, onde a mais ínfima partícula de pó encontrava os dias contados.  Os aniversários da filha, Rosarinho, eram festejados por todos como se da sua própria filha se tratasse e, em tempos de aperto, sabiam que ao bater àquela porta saiam reconfortados.   Mas as coisas tinham mudado… 
Rosarinho abandonara-os há já vinte e sete anos.  A doença fragilizara-a e nem o apoio dos pais e do marido a tinham conseguido ajudar.  Na altura, a incógnita da maleita deixara, para além da tristeza e do desespero, uma enorme revolta no coração de todos.  Anos mais tarde ouviu-se falar em Lúpus, e tudo começou a fazer mais sentido.  Aos poucos e poucos todos retomaram a sua vida e a jovem tornou-se uma doce recordação na mente de todos, a lembrança de alguém puro e meigo que partira antes do seu tempo.  Só D. Ana Bela e o Sr. Jacinto pareciam, ainda, conviver diariamente com o espectro da filha.  O brilho no olhar de ambos apagou-se e as gargalhadas da mulher, outrora tão fáceis e límpidas que limpavam a alma de quem as ouvia, tornaram-se raras.  As festividades escasseavam.
Há 3 anos, por volta do Dia da Liberdade, Jacinto partira.  Ana Bela, de solitária, passou a só.  Nada havia de estranho neste abandono e todos sussurravam, longe dos ouvidos da viúva, “que é que querem?  Já era velho!”  Mas para Ana Bela, que o conhecera na frescura dos seus dezassete anos (contava ele vinte e três) sempre o vira como o jovem magro e garboso que a perseguira durante 11 meses, até ela aceder que ele pedisse ao seu pai, homem hirsuto e seco, permissão para a namorar.  Oito meses depois fazia dele seu marido.  E agora ali se via…  viúva e órfã de filha.
Aos poucos as saídas diminuíram, até cessarem por completo.  A luz do sol, que durante anos fora visita assídua do apartamento, encandeava-a com o seu calor, e mantinha-a longe com a ajuda dos estores e de pesados reposteiros.  Música, gargalhadas, até a voz dos outros, feriam-lhe os ouvidos por não trazerem consigo o timbre das vozes que ansiava.  O brio que sempre a guiara na gestão da casa parecia-lhe agora uma futilidade.  Ninguém entrava na casa, ninguém queria saber se o pó se acumulava, se as pratas eram areadas, se o ar era pesado, húmido e estagnado.  De noite, quando todos dormiam, ia por vezes ao contentor do lixo em frente ao prédio, sempre que um saco atingia a sua capacidade máxima.  Mas o ar fresco da noite parecia atingi-la como uma bala de obus.  A única coisa que a preocupava, ainda, era estar sempre impecavelmente vestida, calçada e arranjada.  Todas as manhãs, ao escolher um dos muitos fatos de pesado luto que formavam agora o seu guarda-roupa, passava a escova nas vestes negras, penteava-se com o esmero que Jacinto sempre lhe elogiara, colocava a pregadeira de sua mãe (sua única herança) ao peito e aguardava.  Esperava, assim, que quando finalmente a encontrassem, estaria pronta para se reunir a Eles.  Uma vez por semana, Mariana, a jovem de cinquenta e quatro anos, do piso de cima, levava-lhe as mercearias da semana.  E todas as semanas Ana Bela pensava “talvez seja desta”.
Mas a Morte passava na rua e, olhando para as janelas silenciosas e quietas, julgava a casa vazia.

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